Um pesadelo que só faz sentido viver uma vez

Darren Aronofsky continua a ser sinônimo de provocação, desconforto e ambição. “Mãe!”, convida a muita discussão e instala-se nas nossas mentes, permanecendo vivo no pós-filme.




Darren Aronofsky é um caso fascinante. “A Vida não é um Sonho” (2000), aquele que ainda é para mim o ex-líbris do realizador, retrata uma “tradição” Aronofsky. É usual brindar-nos com filmes pesados, desconfortáveis e marcantes. Experiências intensas, aterrorizadoras, perturbadoras e paranóicas, rumo à perfeição, à cura ou à prisão de mais uma dose.
É improvável querermos rever “A Vida não é um Sonho”, “Pi”, “O Último Capítulo” e “Cisne Negro”. Porque, mesmo tratando-se de filmes de qualidade, são pesadelos aos quais não desejamos regressar. E é essa a capacidade de Aronofsky: invadir o nosso subconsciente, numa espécie de terapia de choque.
A alegoria de “Mãe!” tem origem numa premissa aparentemente simples. Um casal (interpretado por Jennifer Lawrence e Javier Bardem) vê a sua relação testada e a sua paz interrompida com a chegada de uma série de convidados. Importa acrescentar duas ideias: 1) seria certamente interessante cada espectador receber no final do filme um vídeo com a monitorização do seu rosto, em grande plano, ao longo das duas horas de filme, 2) fica o aviso para quem ainda não viu “Mãe!”, abaixo surgirão spoilers, fundamentais na desconstrução desta narrativa.
“Mãe!” está nos antípodas do comercial, e nesse sentido deve-se elogiar a coragem de um grande estúdio como a Paramount em apoiar a visão e o risco de Aronofsky. Numa narrativa que mais tarde se confirma como circular ou cíclica, esta viagem bíblica não nomeia as suas personagens. Nem precisa, importando sim o que elas representam. Os conceitos e significados que se extraem da alegoria. Ele (Bardem) é o criador, um autor aclamado com um bloqueio criativo, ela (Lawrence) a sua musa. Neste Jardim de Éden, o primeiro convidado é um homem (Ed Harris), chegando depois a sua mulher (Michelle Pfeiffer). Mais tarde, os filhos, interpretados pelos irmãos na vida real Domnhall e Brian Gleeson. E, antes de dilúvios e apocalipses, as pistas de Aronofsky são bastante evidentes: Eva, Adão e a sua ferida na costela, Caim a matar Abel.




A razoável linearidade da primeira fase de “Mãe!” mergulha depois na loucura absoluta. Na destruição. No caos e na perversão. É nesse período que o realizador diz tudo o que tem a dizer – valorizando-se a riqueza com que Aronofsky dispara ou parece refletir sobre temas bem diferentes. E é também esse período que dita a apreciação do filme, e afasta espectadores em direcção a pólos opostos.
Mas é possível viver algures no meio das duas fações. Jennifer Lawrence é quem nos conduz durante duas horas, quase sempre com a câmara bem próxima e apaixonada pelo seu rosto da sua musa, a captar o desnorte, a impotência e o sofrimento. E a significativa diferença de idades entre Lawrence e Bardem acaba por ser (bem) justificada. Se “Mãe!” se limitasse a servir de retrato para o génesis, nem o mais fervoroso fanático por Aronofsky poderia escapar a considerar a obra fraca. Felizmente, é um pouco mais do que isso.
Difícil de mastigar e de digerir, um dos problemas do filme está porventura no seu target. Num diagrama de Venn, poder-se-ia determinar o público ideal de “Mãe!” como aquele que conhece a bíblia mas condena a ideia de Deus. Embora se possa extrapolar e ler como objetivos simultâneos do autor um ensaio ou crítica à religião como um todo, sem descurar noções como fama e celebridades, política e redes sociais, a relação entre homem e mulher, o Homem e a Terra.
Numa época em que o pós-filme e o período que intercala dois episódios de uma série tem cada vez maior peso, graças aos Reddits desta vida, ao passa-a-palavra e ao sentimento de pertença, o principal fator na avaliação de um filme deve continuar a ser a experiência do filme em si. Embora muitos filmes nos façam pensar depois e cresçam em nós, é o durante que mais pesa. Compreende-se a divisão entre elogios babados e críticas devastadoras. Seria difícil outra consequência de algo tão intenso, perturbador e por vezes bizarro. Aliás, esqueçam o por vezes. Cômico também, em alguns momentos, embora não fosse certamente esse o intuito do realizador.
Neste pedaço de arte arriscada, a recriação da bíblia serve de tela para pintar um quadro mais amplo. A experiência não é agradável – reforço, traço habitual dos filmes de Aronofsky – mas a pluralidade de leituras que a reta final, insana, sobrelotada, confusa mas brilhantemente executada, possibilita salva o filme. E justifica a sua existência.
Incomoda, choca, divide, estimula, ofende, impressiona, provoca. Num filme que não irá escapar ao rótulo de pretensioso, Aronofsky diz muita coisa. Infelizmente, talvez demais. E fá-lo através de um subtexto que, aqui e ali, até deixa de o ser.


“Mãe!” é um pesadelo. Não o queremos viver de novo mas, de um modo surreal, caótico e desconexo, acaba por dizer bastante sobre nós. Não é o pior filme de sempre, nem o pior filme do ano. Mas também não é um bom filme. Agora que já deitaste isto tudo cá para fora, vai fazer o que realmente sabes, Aronofsky.

Fonte: www.magazine-hd.com

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