O Amor como Fator Civilizador

As provas da psicanálise demonstram que quase toda relação emocional íntima entre duas pessoas que perdura por certo tempo — casamento, amizade, as relações entre pais e filhos — contém um sedimento de sentimentos de aversão e hostilidade, o qual só escapa à percepção em consequência da repressão. Isso acha-se menos disfarçado nas altercações comuns entre sócios comerciais ou nos resmungos de um subordinado em relação ao seu superior.

A mesma coisa acontece quando os homens se reúnem em unidades maiores. Cada vez que duas famílias se vinculam por matrimónio, cada uma delas se julga superior ou de melhor nascimento do que a outra.

De duas cidades vizinhas, cada uma é a mais ciumenta rival da outra; cada pequeno cantão encara os outros com desprezo. Raças estreitamente aparentadas mantêm-se a certa distância uma da outra: o alemão do sul não pode suportar o alemão setentrional, o inglês lança todo tipo de calúnias sobre o escocês, o espanhol despreza o português. Não ficamos mais espantados que diferenças maiores conduzam a uma repugnância quase insuperável, tal como a que o povo gaulês sente pelo alemão, o ariano pelo semita.


Quando essa hostilidade se dirige contra pessoas que de outra maneira são amadas, descrevemo-la como ambivalência de sentimentos e explicamos o fato, provavelmente de maneira demasiadamente racional, por meio das numerosas ocasiões para conflitos de interesse que surgem precisamente em tais relações mais próximas.

Nas antipatias e aversões indisfarçadas que as pessoas sentem por estranhos com quem têm de tratar, podemos identificar a expressão do amor a si mesmo, do narcisismo. Esse amor a si mesmo trabalha para a preservação do indivíduo e comporta-se como se a ocorrência de qualquer divergência das suas próprias linhas específicas de desenvolvimento envolvesse uma crítica delas e uma exigência da sua alteração. Não sabemos por que tal sensitividade deva dirigir-se exatamente a esses pormenores de diferenciação, mas é inequívoco que, em relação a tudo isso, os homens dão provas de uma presteza a odiar, de uma agressividade cuja fonte é desconhecida, e à qual se fica tentado a atribuir um carácter elementar.

Mas, quando um grupo se forma, a totalidade dessa intolerância desvanece-se, temporária ou permanentemente, dentro do grupo. Enquanto uma formação de grupo persiste ou até onde ela se estende, os indivíduos do grupo comportam-se como se fossem uniformes, toleram as peculiaridades dos seus outros membros, igualam-se a eles e não sentem aversão por eles. Uma tal limitação do narcisismo, de acordo com nossas concepções teóricas, só pode ser produzida por um determinado fator, um laço libidinal com as outras pessoas. O amor por si mesmo só conhece uma barreira: o amor pelos outros, o amor por objetos.

Levantar-se-á imediatamente a questão de saber se a comunidade de interesse em si própria, sem qualquer adição de libido, não deve necessariamente conduzir à tolerância das outras pessoas e à consideração para com elas. Essa objeção pode ser enfrentada pela resposta de que, não obstante, nenhuma limitação duradoura do narcisismo é efectuada dessa maneira, visto que essa tolerância não persiste por mais tempo do que o lucro imediato obtido pela colaboração de outras pessoas.

Contudo, a importância prática desse debate é menor do que se poderia supor, porque a experiência demonstrou que, nos casos de colaboração, se formam regularmente laços libidinais entre os companheiros de trabalho, laços que prolongam e solidificam a relação entre eles até um ponto além do que é simplesmente lucrativo.

A mesma coisa ocorre nas relações sociais dos homens, como se tornou familiar à pesquisa psicanalítica no decurso do desenvolvimento da libido individual. A libido liga-se à satisfação das grandes necessidades vitais e escolhe como seus primeiros objetos as pessoas que têm uma parte nesse processo. E, no desenvolvimento da humanidade como um todo, do mesmo modo que nos indivíduos, só o amor atua como fator civilizador, no sentido de ocasionar a modificação do egoísmo em altruísmo.

E isso é verdade tanto quanto ao amor sexual pelas mulheres, com todas as obrigações que envolve de não causar dano às coisas que são caras às mulheres, quanto do amor dessexualizado e sublimado, por outros homens, que se origina do trabalho em comum.

Sigmund Freud, in 'Psicologia das Massas e a Análise do Eu'

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