Mente Escura
Há tempos que a ciência tem postulado o estudo da consciência humana com um dos maiores desafios do conhecimento humano, talvez mesmo além de uma compreensão elaborada – como, por exemplo, a compreensão que temos do eletromagnetismo ou do nascimento de estrelas –, pois se trata essencialmente de utilizar o próprio objeto em estudo para realizar o estudo em si.
O psiquiatra alemão Hans Berger ajudou a iluminar a questão com a criação do eletroencefalograma (EEG), que grava a atividade elétrica no cérebro por meio de um conjunto de linhas ondulatórias sobre um gráfico. Com essa ferramenta, os neurologistas passaram a mapear a atividade elétrica do cérebro, e fazer diversas associações entre impulsos de coordenação motora, estados mentais e de foco de atenção dos inúmeros colaboradores e pacientes estudados nas últimas décadas.
Hoje se sabe que a consciência é mais como um processo que coordena decisões de acordo com o fluxo de informação sensorial recebido, ela é como o regente de uma “orquestra mental”. Porém, a análise qualitativa dos fenômenos conscientes complexos, como o amor e as decisões morais, ainda passam ao largo da explicação científica. Este é o famoso “problema difícil”: identificar o que exatamente interpreta informações e elabora respostas morais, em oposto a mera computação das informações.
Richard Feynman gostava de comparar a forma como os físicos modernos trabalham com a detecção das ondas de uma piscina: acaso não fosse possível ver quem mergulhou na piscina a pouco tempo, podemos ter uma boa noção de onde e quando ocorreu o mergulho, assim como o peso de quem mergulhou, apenas analisando a freqüência e a amplitude das ondas na superfície da água. A ciência lida somente com o que pode detectar – se ela não detecta o amor ou a moral, ao menos pode detectar o efeito elétrico no cérebro que ocasiona as demonstrações de sentimentos complexos. O que a ciência não pode pretender, entretanto, é que tais sentimentos se resumam ao efeito, ignorando a causa... Ou postulando que a causa está além de nosso controle, que é fruto do mero agitar químico do cérebro, como afirma o filósofo Daniel Dennet, o que em todo caso é basicamente o mesmo que ignorar a causa.
Carl Sagan já chegou a afirmar que prefere seguir os impulsos de seu inconsciente, que este na maior parte das vezes lhe “guia” para caminhos mais produtivos e sensatos do que sua racionalidade consciente [1]. Ora, mas se a ciência se preocupa em detectar a atividade elétrica do cérebro quando este está em plena atividade consciente, o que dizer de quando estamos sem fazer nada, teoricamente “sem pensar em nada, absolutamente nada”?
Em ensaios seminais sobre suas descobertas com as primeiras pesquisas utilizando o EEG em 1929, Berger deduziu, a partir das incessantes oscilações elétricas detectadas pelo aparelho, que “temos de supor que o sistema nervoso central está sempre – e não só durante o estado de vigília – num estado de considerável atividade.” Mas suas idéias foram amplamente ignoradas, até tempos recentes, bem recentes... A tecnologia para se examinar o cérebro se aprimorou: em 1970, veio à tomografia por emissão de pósitrons (PET, Positron-Emission-Tomography), que mede o metabolismo da glicose, fluxo sanguíneo e absorção de oxigênio para a extensão da atividade neuronal; já em 1992 veio à captação de imagem por ressonância magnética funcional (fMRI, functional Magnetic Ressonance Imaging), que mede a oxigenação do cérebro com o mesmo propósito.
Essas tecnologias são mais do que capazes de analisar a atividade cerebral, focada ou não, mas a maioria dos estudos iniciais levou a impressão errônea de que, na maior parte, as áreas do cérebro permanecem tranqüilas até que sejam requisitadas a desempenhar alguma tarefa específica. Ao longo dos anos, no entanto, alguns pesquisadores [2] começaram a estudar a atividade cerebral de colaboradores simplesmente em estado de descanso, deixando a mente livre para divagar. Eles descobriram que a energia gasta pelo cérebro não varia mais do que 5% entre o estado de vigília e/ou atividade consciente e o estado de relaxamento completo, quando supostamente não fazemos absolutamente nada a não ser pensar, divagar...
A conclusão surpreendente há que chegaram é a de que boa parte da atividade geral – de 60% a 80% de toda a energia gasta pelo cérebro – ocorre em circuitos não relacionados a nenhuma evento externo. Com a devida licença dos colegas astrônomos, os pesquisadores deram a essa atividade intrínseca o nome de “energia escura do cérebro” – referência à energia não visível (não interage com fótons), mas que representa a maior parte da massa do universo.
Ficou claro, a partir desse trabalho, que o processo consciente é responsável por apenas uma parte, ainda que crítica, da atividade total de todos os sistemas do cérebro. Como Berger mostrou em primeiro lugar, e muitos outros confirmaram desde então, a sinalização cerebral consiste em um amplo espectro de freqüências, que vão dos potenciais corticais lentos (SCPs, Slow Cortical Potentials) de baixa freqüência até a atividade acima de 100 ciclos por segundo. Um dos grandes desafios da ciência é entender como os sinais de diferentes freqüências interagem.
A orquestra sinfônica proporciona uma metáfora adequada, com sua integrada “tapeçaria” de sons provenientes de múltiplos instrumentos que tocam no mesmo ritmo. Os SCPs equivalem à batuta do regente. Só que, em vez de manter o tempo para um conjunto de instrumentos musicais, esses sinais coordenam o acesso que cada sistema cerebral exige para o vasto depósito de memórias e outras informações necessárias para se sobreviver num mundo complexo e em permanente mudança. Os SCPs garantem que as computações corretas ocorram de maneira coordenada, exatamente no momento adequado.
Mas o cérebro é muito mais complexo que uma orquestra sinfônica. Ele oscila continuamente entre a necessidade de equilibrar respostas planejadas com demandas imediatas. Os grandes expoentes da psicologia, como William James, Sigmund Freud e Carl Jung, sempre compreenderam o enorme e misterioso papel do inconsciente sobre o consciente. Que o cérebro pode até ser uma máquina de envio e reenvio de informações, um computador molecular de vasta complexidade, mas ainda assim há que se pensar no que quer que – esteja onde estiver no cérebro – interpreta as informações recebidas e elabora respostas morais e sentimentais...
Eis a mente escura, aquela que ainda escapa da lente agitada da ciência, assim como a grande parte da matéria e da energia do universo. Do que é formada? Onde está exatamente no cérebro? Seria ela limitada pelo corpo, ou apenas uma energia que toca as teclas do cérebro enquanto este permanece como um instrumento apto para ser tocado? São ainda muitos mistérios, muitos paradoxos e enigmas, muitos “problemas difíceis” no caminho da ciência... Mas ela não descansará; nós não descansaremos, pois a natureza não nos deixará relaxar.
[1] Livre interpretação de um breve comentário de Sagan num especial da TV americana, onde ele, Stephen Hawking e Arthur C. Clarke discutiram sobre Deus, o universo e as leis da natureza.
[2] Boa parte das informações científicas deste artigo foram retiradas do artigo “A energia escura do cérebro”, capa da Scientific American de Abril de 2010 (ano 8, #95), escrito por Marcus E. Raichle – professor de radiologia e neurologia –, que é um dos principais pesquisadores no assunto aqui abordado.
O psiquiatra alemão Hans Berger ajudou a iluminar a questão com a criação do eletroencefalograma (EEG), que grava a atividade elétrica no cérebro por meio de um conjunto de linhas ondulatórias sobre um gráfico. Com essa ferramenta, os neurologistas passaram a mapear a atividade elétrica do cérebro, e fazer diversas associações entre impulsos de coordenação motora, estados mentais e de foco de atenção dos inúmeros colaboradores e pacientes estudados nas últimas décadas.
Hoje se sabe que a consciência é mais como um processo que coordena decisões de acordo com o fluxo de informação sensorial recebido, ela é como o regente de uma “orquestra mental”. Porém, a análise qualitativa dos fenômenos conscientes complexos, como o amor e as decisões morais, ainda passam ao largo da explicação científica. Este é o famoso “problema difícil”: identificar o que exatamente interpreta informações e elabora respostas morais, em oposto a mera computação das informações.
Richard Feynman gostava de comparar a forma como os físicos modernos trabalham com a detecção das ondas de uma piscina: acaso não fosse possível ver quem mergulhou na piscina a pouco tempo, podemos ter uma boa noção de onde e quando ocorreu o mergulho, assim como o peso de quem mergulhou, apenas analisando a freqüência e a amplitude das ondas na superfície da água. A ciência lida somente com o que pode detectar – se ela não detecta o amor ou a moral, ao menos pode detectar o efeito elétrico no cérebro que ocasiona as demonstrações de sentimentos complexos. O que a ciência não pode pretender, entretanto, é que tais sentimentos se resumam ao efeito, ignorando a causa... Ou postulando que a causa está além de nosso controle, que é fruto do mero agitar químico do cérebro, como afirma o filósofo Daniel Dennet, o que em todo caso é basicamente o mesmo que ignorar a causa.
Carl Sagan já chegou a afirmar que prefere seguir os impulsos de seu inconsciente, que este na maior parte das vezes lhe “guia” para caminhos mais produtivos e sensatos do que sua racionalidade consciente [1]. Ora, mas se a ciência se preocupa em detectar a atividade elétrica do cérebro quando este está em plena atividade consciente, o que dizer de quando estamos sem fazer nada, teoricamente “sem pensar em nada, absolutamente nada”?
Em ensaios seminais sobre suas descobertas com as primeiras pesquisas utilizando o EEG em 1929, Berger deduziu, a partir das incessantes oscilações elétricas detectadas pelo aparelho, que “temos de supor que o sistema nervoso central está sempre – e não só durante o estado de vigília – num estado de considerável atividade.” Mas suas idéias foram amplamente ignoradas, até tempos recentes, bem recentes... A tecnologia para se examinar o cérebro se aprimorou: em 1970, veio à tomografia por emissão de pósitrons (PET, Positron-Emission-Tomography), que mede o metabolismo da glicose, fluxo sanguíneo e absorção de oxigênio para a extensão da atividade neuronal; já em 1992 veio à captação de imagem por ressonância magnética funcional (fMRI, functional Magnetic Ressonance Imaging), que mede a oxigenação do cérebro com o mesmo propósito.
Essas tecnologias são mais do que capazes de analisar a atividade cerebral, focada ou não, mas a maioria dos estudos iniciais levou a impressão errônea de que, na maior parte, as áreas do cérebro permanecem tranqüilas até que sejam requisitadas a desempenhar alguma tarefa específica. Ao longo dos anos, no entanto, alguns pesquisadores [2] começaram a estudar a atividade cerebral de colaboradores simplesmente em estado de descanso, deixando a mente livre para divagar. Eles descobriram que a energia gasta pelo cérebro não varia mais do que 5% entre o estado de vigília e/ou atividade consciente e o estado de relaxamento completo, quando supostamente não fazemos absolutamente nada a não ser pensar, divagar...
A conclusão surpreendente há que chegaram é a de que boa parte da atividade geral – de 60% a 80% de toda a energia gasta pelo cérebro – ocorre em circuitos não relacionados a nenhuma evento externo. Com a devida licença dos colegas astrônomos, os pesquisadores deram a essa atividade intrínseca o nome de “energia escura do cérebro” – referência à energia não visível (não interage com fótons), mas que representa a maior parte da massa do universo.
Ficou claro, a partir desse trabalho, que o processo consciente é responsável por apenas uma parte, ainda que crítica, da atividade total de todos os sistemas do cérebro. Como Berger mostrou em primeiro lugar, e muitos outros confirmaram desde então, a sinalização cerebral consiste em um amplo espectro de freqüências, que vão dos potenciais corticais lentos (SCPs, Slow Cortical Potentials) de baixa freqüência até a atividade acima de 100 ciclos por segundo. Um dos grandes desafios da ciência é entender como os sinais de diferentes freqüências interagem.
A orquestra sinfônica proporciona uma metáfora adequada, com sua integrada “tapeçaria” de sons provenientes de múltiplos instrumentos que tocam no mesmo ritmo. Os SCPs equivalem à batuta do regente. Só que, em vez de manter o tempo para um conjunto de instrumentos musicais, esses sinais coordenam o acesso que cada sistema cerebral exige para o vasto depósito de memórias e outras informações necessárias para se sobreviver num mundo complexo e em permanente mudança. Os SCPs garantem que as computações corretas ocorram de maneira coordenada, exatamente no momento adequado.
Mas o cérebro é muito mais complexo que uma orquestra sinfônica. Ele oscila continuamente entre a necessidade de equilibrar respostas planejadas com demandas imediatas. Os grandes expoentes da psicologia, como William James, Sigmund Freud e Carl Jung, sempre compreenderam o enorme e misterioso papel do inconsciente sobre o consciente. Que o cérebro pode até ser uma máquina de envio e reenvio de informações, um computador molecular de vasta complexidade, mas ainda assim há que se pensar no que quer que – esteja onde estiver no cérebro – interpreta as informações recebidas e elabora respostas morais e sentimentais...
Eis a mente escura, aquela que ainda escapa da lente agitada da ciência, assim como a grande parte da matéria e da energia do universo. Do que é formada? Onde está exatamente no cérebro? Seria ela limitada pelo corpo, ou apenas uma energia que toca as teclas do cérebro enquanto este permanece como um instrumento apto para ser tocado? São ainda muitos mistérios, muitos paradoxos e enigmas, muitos “problemas difíceis” no caminho da ciência... Mas ela não descansará; nós não descansaremos, pois a natureza não nos deixará relaxar.
[1] Livre interpretação de um breve comentário de Sagan num especial da TV americana, onde ele, Stephen Hawking e Arthur C. Clarke discutiram sobre Deus, o universo e as leis da natureza.
[2] Boa parte das informações científicas deste artigo foram retiradas do artigo “A energia escura do cérebro”, capa da Scientific American de Abril de 2010 (ano 8, #95), escrito por Marcus E. Raichle – professor de radiologia e neurologia –, que é um dos principais pesquisadores no assunto aqui abordado.
fonte: http://textosparareflexao.blogspot.com
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