O Nome da Rosa

por Carter Batista

Quando alguém se determina a ler O Nome da Rosa também está decidindo adentrar na santíssima abadia que o bom Adso considerou piedoso não revelar o nome.

Todavia, apenas é dado sair desse imponente reduto beneditino, encravado nas montanhas da região setentrional da Itália, àquele que ali permanece por sete dias, orientado pelas horas canônicas, o “divinum officium” fixadas na regra pelo próprio santo fundador da Ordem.

É bom que se diga que a expressão “viver sete dias na abadia” é utilizada pelo próprio autor no complemento indispensável “Pós-Escrito a O Nome da Rosa”, obra em que Umberto Eco sustenta que a premissa inafastável para se chegar ao sétimo dia é aceitar o ritmo da abadia.

Segundo ele, as cem primeiras páginas do livro revelam tal e tão didático tom que foram mantidas, ignorando sugestão em contrário do primeiro editor, para testar e penitenciar o incauto leitor. Penitenziagite! Sim é preciso pagar tal tributo para ultrapassar a estrada sinuosa e escarpada que leva à abadia. Do contrário, permanece-se abandonado nas encostas, do lado de fora das muralhas e ignorante acerca de uma obra sem paralelos.

Mas o que Umberto Eco trata por penitência é, em verdade, um prêmio saboroso para um diletante da história como eu, para quem essa introdução minuciosa e esclarecedora acerca eventos então correntes na Europa por volta do ano do Senhor de 1327 soam como música. Ali o narrador Adso de Melk dá conta das atribulações da cristandade, das disputas políticas e religiosas entre os Estados e a Igreja, dos intensos debates travados por franciscanos e beneditinos acerca da pobreza de Cristo e das consequências que poderiam advir da prevalência da tese destes ou daqueles. E se essa penitência, conforme dito, é o próprio prêmio, nada se pode dizer do que se encontra adiante, nas demais 460 páginas, senão que elas se revelam a melhor e mais profícua das recompensas. Um raro deleite, naturalmente.

O livro, entretanto, é quase hermético. Suas alusões a textos muito antigos, as citações ocultas de obras medievais – que o autor explica existirem no aludido Pós-Escrito – e os longos trechos em latim desacompanhados de tradução o tornam praticamente indecifrável. Talvez, um livro assim fosse apetecer somente o publico especializado e devidamente versado nos alfarrábios da tradição, mas nem o seu elevado grau de erudição o impediu de se tornar um fenômeno literário mundial. O Nome da Rosa atingiu o grande público em diversos países o que fez surgir teses acerca dessa surpreendente aceitação.

Imagino o livro – e certamente não fui o primeiro - como uma cebola em que cada incursão é possível retirar uma camada.

A primeira dessas camadas é a mais evidente e diz respeito aos terríveis crimes que presenciamos no interior daqueles muros ancestrais: monges caem como moscas, a trama policial em si é riquíssima e sempre surpreende; o criminoso, um assassino em série que parece brincar com as previsões do Apocalipse; e os crimes brutais se relacionam a um certo livro misterioso.

O detetive, Frei Guilherme de Baskerville, um homem a frente de seu tempo, amigo de Guilherme de Ockham, discípulo de Roger Bacon, franciscano que deixou as fileiras da Inquisição. O irmão Guilherme, a quem rapidamente nos afeiçoamos, é um doutíssimo frade minorita, um homem da ciência, amante dos livros e dono de um orgulho intelectual que chega as raias do pecado.

Guilherme é um autêntico herói e se hoje felizmente podemos travar conhecimento com esse grande sujeito é graças a certa antipatia que o Ockham histórico, não o filósofo, desperta no autor, conforme ele mesmo registrou ao comentar que a princípio havia decidido que o próprio doutor invencível Willian of Ockham seria o tutor de Adso.

O centro da vida na abadia é a grande biblioteca: a maior da cristandade. Famosa em todos os cantos do mundo conhecido; um baluarte do conhecimento, onde a sabedoria é sabiamente preservada e estrategicamente mantida fora do alcance dos comuns (nada é mais melancólico do que livros que não podem ser lidos); protegida por um cão feroz, um venerável ancião que, malgrado cego, enxerga longe e não ri, porquanto, segundo acredita, Cristo jamais riu em toda a sua vida na terra.

Percebo que é tempo de encerrar, por certo que há muito incorri no pecado da prolixidade e, então, noto que há muitos pontos relevantes da obra que mereceriam cada uma a sua própria resenha, uma vez que no bojo desse épico há encontramos profundas questões acerca da história, da religião, da filosofia, da lógica, da história da religião, da história da ciência, da literatura e da política medieval.

Note-se, ainda, que até agora não havia me referido à palavra “nominalismo” cuja decifração plena certamente se encontra em uma camada que o meu parco entendimento ainda não me permitiu alcançar. Quem sabe quando voltar à abadia para viver outros sete dias. Certamente voltarei.

Ainda bem que ainda existem homens como Umberto Eco capazes de pensar em outros como Guilherme de Braskerville. Esse mesmo Guilherme que, em uma das muitas lições que ministra ao jovem Adso, registra que os homens da antiguidade clássica (Grécia e Roma) era gigantes, já os do medievo não passavam de anões, mas anões que graças a lugares como aquela santíssima abadia onde o conhecimento era preservado, compilado, traduzido e estudado, podiam ver o mundo posicionados em cima dos ombros daqueles gigantes. Os anões de hoje apenas rastejam, mas não Umberto Eco.

Umberto Eco é um raro gigante entre anões. E um gigante que, com olhos de pássaro, vê o mundo do ombro dos mesmos gigantes que o seu Guilherme um dia viu.

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