Sangue Pt. 1

"... Seja, pois, o motivo de tuas ações e dos teus pensamentos sempre o cumprimento do dever, e fazer as tuas obras sem procurares recompensa, sem te preocupares com o teu sucesso ou insucesso, com teu ganho ou o teu prejuízo pessoal. Não caias, porém, em ociosidade e inação, como acontece facilmente aos que perderam a ilusão de esperar uma recompensa das suas ações. ..." (Baghavad-Gita)

Finalmente encontrei a cidade. Cinco dias comendo poeira, quase sem dormir, me alimentando pouco e com este sol insuportável fritando meus miolos. Não sei se aguentaria mais um dia. Vejo a cidade no vale abaixo de ponta a ponta, é pequena e isolada, praticamente no meio do nada, pergunto-me como as pessoas conseguem viver em um lugar assim.
Dou partida novamente em minha Harley, meus braços estão dormentes, quase não consigo acelerar. Preciso arrumar um lugar para descansar.
Sinto novamente o gosto de terra na boca, reparo que quanto mais próximo fico da cidade mais inóspito e sem vida fica o terreno.
Adentro nas ruas, entre os barracos de madeira. Não há ninguém nas ruas, a cidade parece deserta, mas eu noto rostos que aparecerem furtivamente nas janelas, e se escondem rapidamente quando passo. O que será que estes habitantes tanto temem... talvez nunca tenham visto uma moto antes.
Mais a frente noto um imenso galpão, parecido com um celeiro, deve ser o local de meu destino. Paro a moto, retiro o pedaço de papel amassado do bolso e, pela milésima vez, leio os garranchos: “LACUDRA - MARANHÃO - GALPÃO – SEU PAI O AGUARDA – O PASTOR”. Como estas palavras mudaram minha vida nos últimos dois anos, será que finalmente o segredo será revelado...
Avanço com a moto e noto que o galpão é na realidade um tipo de “igreja” evangélica. Acima da grande porta de entrada lê-se em uma placa: “Igreja da Sagrada Redenção” e logo abaixo: “próximo culto: 8 horas”, escrito a giz em uma lousa dependurada na parede. Ótimo, agora são 3 da tarde, posso descansar algumas horas.
No final da rua, vejo uma placa escrito “pousada” em uma das casas. Paro a moto em frente e bato na porta. Uma senhora gorda vestida de negro atende, gesticula para eu entrar e, sem dizer uma palavra, dá as costas e entra novamente em sua casa. Ao entrar reparo que a casa é bem simples mas aconchegante. A senhora gorda está parada no corredor segurando aberta a porta de um dos quartos, esta deve ser uma das maiores casas da região, pois possui quatro quartos no corredor e uma porta no centro, provavelmente deve ser um banheiro comum. A mulher aponta para um cartaz colado na porta com o valor da estadia e algumas regras do local, e vira novamente as costas afastando-se.
O quarto possui apenas uma cama e uma mesinha de cabeceira com uma tigela de água. Tiro minha jaqueta de couro que um dia foi preta e minha camiseta suada. Lavo-me na tigela com água fresca e meu corpo me lembra que estou com sede e fome, vou perguntar para a “simpática” dona da pousada onde posso comer algo, mas, ao abrir a porta deparo-me com uma jarra de água gelada e uma bandeja de frutas frescas, talvez a mulher no fundo seja uma boa anfitriã. Falo um obrigado em voz alta e fecho a porta. Neste momento, escuto uma voz anazalada, quase um sussurro dizendo: “Vááá emborrrraaaa!”, vindo do lado de fora do quarto. Abro a porta rapidamente mas não há ninguém no corredor e o silêncio é absoluto. “Lugar maldito”, penso enquanto apanho uma camiseta limpa de minha mochila. Pego também minha faca, a única arma que trouxe nesta viagem.

Sento na cama e me pergunto por quanto tempo mais irei aguentar sem uma transfusão sanguínea. Sou hemofílico de nascença, “...um tipo especial de hemofilia, sorte seu tipo de sangue ser AB ou receptor universal.”, dizem os médicos. Normalmente o sangue do hemofílico não coagula, causando hemorragias internas e externas que só podem ser estancadas ao introduzir “sangue novo”. A minha diferença é que, estes hemofílicos necessitam algo em torno de 30 transfusões mensais, eu faço uma vez por semana e, segundo os médicos, após cada transfusão, apresento uma fantástica capacidade regenerativa além de um ótimo vigor físico. Fiz minha última transfusão um dia antes de viajar, acho que dá para aguentar mais uns três dias. Passo o dedo no fio da faca para conferir o corte e procuro fazer uma retrospecção do que aconteceu até agora. Tudo começou quando achei aquele livro na biblioteca...

...continua.

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