Sangue Pt. 5


Ok. Aqui estou, no meio do nada, cercado por um monte de evangélicos egocêntricos que pensam ser superiores ao restante da humanidade, com um pastor maluco que diz ser meu pai e ter dois mil e quinhentos anos de idade. Fico imaginando se quando acordar vou conseguir lembrar deste sonho, e porque diabos eu não acordo logo.

O homem que se diz meu pai continua a olhar fixamente para mim, mas agora eu vejo nitidamente o brilho vermelho em seus olhos e sua expressão já não é mais tão tranqüila e amigável como antes. – “Mais uma vez a história se repete, e a cria se volta contra o criador. Infelizmente ‘filho’, meu tempo é curto e não posso desperdiçar o trabalho que venho realizando por quase cinco gerações.” – Os ajudantes, que antes estavam boquiabertos, retomam a compostura e assumem posições distintas ao meu redor. – “Parece que herdou a mediocridade de sua mãe. Se você quer agir como um inferior deve ser tratado como um. Segurem-no!”.

Cercado por todos os lados, observo os ajudantes aproximarem-se lentamente. Acabou, é o fim, seja lá quem forem estes caras, eles me pegaram. Então algo dentro de mim explode, uma chama que perecia estar apagada por toda minha vida parece consumir meu corpo inteiro. Um ódio indomável toma conta do meu corpo fazendo-me reagir instintivamente, acerto um chute no estômago de um, quase ao mesmo tempo em que derrubo outro com um gancho de direita, giro o corpo e chuto a cara do que se aproximava por trás, o último salta por cima do companheiro em minha direção. Aproveito o movimento do corpo no ar e arremesso-o contra o homem de sobretudo. Enquanto estão todos no chão, saco a faca e viro-me na direção do pastor, que permanece parado atrás da mesa observando. “Não estou de brincadeira, quem chegar perto leva faca!” – O pastor me olha fixamente, sinto seu ódio me gelar as veias – “Muito bom...” – Antes de terminar a frase ele me acerta um poderoso soco no rosto, fazendo meu corpo atravessar a sala inteira e colidir com a mesinha ao lado da porta, que se quebra, juntamente com algumas costelas. – “...mas você ainda tem muito que aprender.”

Cuspo sangue, a dor é insuportável, mal consigo me mexer. Não consigo entender como ele me acertou tão rápido. O desgraçado estava a uns três metros de distância e havia uma mesa entre nós. “A raça humana sempre almejou a vida eterna. O medo do desconhecido, do que está por trás do véu da morte e daquilo que não entendem sempre causou pavor e pânico. Você não percebe o que estou oferecendo. Não compreende a grandeza de nossa raça. Não gostaria de chegar a este ponto, mas não tenho escolha, está na hora de deixar cair a máscara...”

Nada do que vivi até agora havia me preparado para este momento, nem em meus pesadelos mais terríveis eu poderia imaginar tal coisa. Minha infância foi repleta de contos sobre monstros e aberrações, mas o que estava acontecendo na minha frente superava qualquer expectativa. O pastor se contorcia enquanto a pele de seu corpo começava a esticar. Seu crânio cresce na parte de trás e sua mandíbula projeta-se para baixo, juntamente com os dentes que se tornam afiados e compridos. Os músculos de seu tórax incham e as veias de seus braços parecem prestes a explodir, seus dedos esticam e a as pontas rompem-se para o surgimento de unhas grossas e afiadas. – “Contemple o terror que habita os corações humanos, olhe para a evolução da carne, veja o próximo estágio da evolução. Estamos no topo da cadeia alimentar, e os humanos são nossas presas...” – A criatura que antes era o pastor, solta uma gargalhada que termina com um guinchado agudo semelhante ao de uma ave que ressoa no cérebro causando um medo paralisante. Ele olha para mim e seus olhos estão vermelhos com as pupilas amarelas de felino, como no sonho. Seu corpo parece ter o dobro do tamanho, ligeiramente curvado para frente com o peso da musculatura, seus braços quase arrastam no chão.

Escuto novamente a voz de minha mãe ecoar em minha cabeça: “...o demônio ...o demônio esteve aqui...”. A criatura emite um grunhido e arma-se em postura de ataque. Olho para minha faca no chão... longe demais. Recuo a mão e sinto um pedaço do pé da mesa entre os dedos, fecho a mão com força na madeira. Então tudo parece acontecer em câmera lenta, a criatura salta em minha direção com os braços estendidos e a boca salivando. Quando ainda está no ar, a uma distância bem próxima de meu rosto, eu cravo com toda minha força o pedaço de madeira no peito da besta, que cai arrastando-me junto para o chão. Ignoro a dor de minhas costelas e utilizo as duas mãos para afundar ainda mais a madeira em seu peito.

A criatura levanta-se e afaste-se cambaleante para trás. Arranca os trinta centímetros de madeira cravados no lado esquerdo de seu peito, que sai acompanhado de um jato de sangue, curva seu corpo e emite um grito agudo, que vai aumentando em intensidade até tornar-se insuportavelmente alto, os vidros das janelas se estilhaçam e eu sinto um filete de sangue escorrer em meus ouvidos. O grito muda de tom, tornando-se gutural como o rugido de um leão ferido, e cessa. Seu corpo fica parado no ar por alguns segundos e cai com um baque seco. Observo a poça de sangue aumentar em torno do corpo inerte no chão. Meus tímpanos devem ter estourados pois não escuto mais nada. Olho para os ajudantes nos quatro cantos do aposento, congelados como estatuas.

“...não deixem ele pegar a criança...” – soa a voz de minha mão em um mundo de estática. “...matem-na se for preciso!” Agora, mais do que nunca, sei o que devo fazer. Sei porque minha mãe preferiu minha morte do que tornar-se um deles. Procuro novamente minha faca e salto em sua direção. “...matem-na...” “...o demônio...” – sem dar tempo par os ajudantes entenderem o que está acontecendo, apoio a faca no chão, com a ponta para cima e jogo todo o peso de meu corpo na lâmina afiada. Sinto o metal escorregar dentro de mim, rompendo camadas de pele e partindo ossos, sinto o sangue quente jorrar abundante da ferida. Sinto um forte aperto no peito, não chega a ser uma dor, parece algo se desprendendo, se partindo... sei que a faca encontrou meu coração e que tudo está acabado. “...não deixem ele pegar a criança...” – consegui mamãe, não me tornei um deles.

Minhas pernas perdem o movimento, sinto frio, minha visão começa a escurecer. Em meio às sombras, vejo o rosto deformado dos ajudantes em volta de meu corpo. Junto minhas últimas forças para levantar meu braço direito, com o punho fechado. Consigo esboçar um sorriso forçado enquanto levanto lentamente meu dedo do meio...




FIM?


“Em um pesadelo sem paz,
Sonhamos com o descanso que a morte nos trás.”

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Valor de Pi

Mitologia Tupi-Guarani

Como a proporção áurea, ou os números de Fibonacci, se expressam na natureza?